Resenha do Livro The Work of Culture

novembro 24, 2008 - Leave a Response

por Tania M. L. Torres

OBEYESEKERE, Gananath. The work of culture: symbolic transformation in psychoanalysis and anthropology. Chicago & London: University of Chicago Press, 1982.

Em sua primeira palestra (acerca da representação e formação do símbolo na antropologia psicanalítica), Obeyesekere mostra os limites e as possibilidades para o estudo antropológico e psicoanalítico dos sistemas simbólicos. O autor recorda Ricoeur ao afirmar que a significância filosófica da psicanálise para a sociedade ocidental é precisamente o destronamento da consciência que foi alcançada por Freud, Nietzche e Marx. A noção cartesiana da consciência, que é central para a ciência e a filosofia dos ocidentais, perdeu a primazia ao se descobrir que a consciência pode errar. Dessa forma, a psicanálise se torna tanto uma ferramenta quanto uma técnica para alcançar o que geralmente permanece inalcançável em outras circunstâncias, isto é, a livre associação e uma teoria que proporcione um conjunto de regras capazes de interpretar tal processo. De fato, pensadores recentes da estirpe de Foulcault embora notem que o pensamento se enraíza no pano de fundo da história e da cultura, têm chegado à conclusão equivocada de que o pensamento “nomológico” não possui a habilidade de transcender o tempo, o lugar, a cultura e as cadeias da história.

            Para o autor, o problema fundamental da antropologia psicanalítica é entender a maneira como as motivações arcaicas da infância são transformadas em formas simbólicas tanto sob a forma de símbolos, quanto de mitos ou representações coletivas. O modelo básico para isso já é dado por Freud em A interpretação dos sonhos, cuja teoria é essencialmente relacionada à formação de imagens e símbolos, embora se limite ao sonho visto como um conjunto simbólico. Freud trabalha com as regras ou princípios fundamentais da transformação simbólica (condensação, deslocamento, representação pelo oposto, projeção, etc).

Essas regras de operação dos sonhos são básicas e se aplicam à operação da cultura também. De forma ideal, nós deveríamos ser capazes de formular as regras de operação da cultura à moda das regras da operação dos sonhos. Mas talvez isso seja impossível na prática. O autor sugere, então, que o pesquisador se contente com o seguinte:

a)                            um relato descritivo do modo como a motivação profunda se transforma em cultura pública;

b)                           uma formulação provisória das regras de como a cultura opera em áreas amplas da vida;

c)                            uma formulação mais rigorosa dessas regras em alguns tipos específicos de formas simbólicas como, por exemplo, o caso da possessão demoníaca.

Se as regras de operação dos sonhos funcionarem também no âmbito da cultura, então vai se poder afirmar que as regras de operação da cultura também podem se aplicar aos sonhos. O autor dá duas razões para isso. Em primeiro lugar, o assim-chamado “afastamento simbólico” (symbolic remove) tem por âncora um princípio mais básico chamado de “substituibilidade”, especialmente em ambientes nos quais tal “substitubilidade” é tão importante quanto nos sonhos. Em segundo lugar, já que os sonhos são influenciados pela cultura, os princípios básicos que nós sabemos influenciarem a cultura, podem também influenciar os sonhos.

            Se dentro de uma única sociedade existirem sistemas simbólicos que estejam mais próximos das fontes motivacionais infantis do que outros, então é também possível que algumas sociedades se submetam a algumas propensões sem cederem a outras, ou que não se submetam a nenhuma delas, permanecendo relativamente indiferentes à elaboração simbólica em qualquer direção. Dessa forma, existiriam quatro orientações simbólicas ideais agindo “crossculturalmente”:

a)      a utilização plena tanto da regressão quanto da progressão, tendo como conseqüência graus diferentes de “afastamento” simbólico das motivações arcaicas;

b)      a utilização de símbolos progressivos ou prospectivos em detrimento da regressão;

c)      a utilização da regressão onde o sistema simbólico se encontra mais próximo das fontes motivacionais;

d)     a utilização mínima da “simbolização cultural” (como no protestantismo e, talvez, nas sociedades tradicionais).

O potencial simbólico dos seres humanos, em todos os lugares, como conseqüência de sua natureza neurofisiológica, pode ser idêntico, mas a utilização de tal potencial em sociedades humanas que estão em existência diverge consideravelmente, pois algumas sociedades são mais propensas à elaboração simbólica enquanto que outras não o são. Além disso, algumas sociedades permitem a elaboração simbólica em certas áreas específicas enquanto que outras, como a Índia hinduísta, permitem a proliferação extrema de símbolos culturais em todos os âmbitos possíveis. A conclusão do autor é de que, por toda a parte, há instituições que promovem, inibem ou impedem o desenvolvimento dos sistemas de símbolos religiosos.

 

Resumo do Artigo Comida e Antropologia

novembro 24, 2008 - 2 Respostas

por Tania M. L. Torres

 

MINTZ, Sidney W. Comida e antropologia: uma breve revisão.  Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, out. 2001, p. 31-41.

 

Dificilmente outro comportamento atrai tão rapidamente a atenção de um estranho como a maneira com que se come: o quê, onde, como e com que freqüência comemos, e como nos sentimos em relação à comida. O comportamento relativo à comida liga-se diretamente à nossa identidade social, reagimos aos hábitos alimentares de outras pessoas, quem quer que sejam elas, e elas reagem aos nossos.

O comportamento relativo à comida revela rapidamente a cultura em que cada um está inserido. Comer é uma atividade humana central não só por sua freqüência, constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera em que se permite alguma escolha. Para cada indivíduo, representa uma base que liga o mundo das coisas ao mundo das idéias por meio de nossos atos.

Nossos corpos podem ser considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez é revelado pela maneira como comemos. A difusão comercial de certos alimentos, como os que foram primeiramente cultivados no Novo Mundo, é muito mais antiga do que a chamada “globalização”, e é importante continuar lembrando aos entusiasmados globalistas – que parecem ser tantos – dessa verdade tão pouco espetacular. A difusão do milho, da batata, do tomate e da pimenta-do-reino, do amendoim e da castanha, tanto no Novo quanto no Velho Mundo, não precisaram de transporte aéreo, de cientistas de aventais brancos, do Mcdonald’s, nem da engenharia genética – nem tampouco da propaganda, e muito menos de antropólogos – e começou a acontecer há quinhentos anos.

A comida foi, então, um capítulo vital na história do capitalismo, muito antes dos dias de hoje: como alimentar pessoas, e como fazer dinheiro alimentando-as. Entretanto, a despeito dessas grandes mudanças, é verdade que as últimas duas décadas assistiram a uma difusão sem precedentes de novos sistemas de distribuição em todo o globo. A invasão da Ásia pela fast food norte americana é um importante exemplo dessa mudança (Watson, 1997), assim como houve, inversamente, uma grande e rápida difusão de restaurantes familiares asiáticos nos Estados Unidos. Na China, por exemplo, comer no Mcdonald’s é sinal de mobilidade ascendente e de amor pelos filhos. Onde quer que o Mcdonald’s se instale na Ásia, as pessoas parecem admirar a iluminação feérica, os banheiros limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o entretenimento oferecido às crianças.

            Como as comidas são associadas a povos em particular, e muitas delas são consideradas inequivocamente nacionais, lidamos freqüentemente com questões relativas à identidade. Todos sabemos que os franceses supostamente comem rãs e caracóis; os chineses, arroz e soja; e os italianos, macarrão e pizza. Mas a espantosa circulação global de comidas e a ciculação paralela de pessoas levantam novas questões sobre comida e etnicidade. Seria mais fácil mudar o sistema político da Rússia do que fazê-los abandonar o pão preto; a China abandonaria sua versão do socialismo mais facilmente do que o arroz. E, no entanto, a população desses dois países mostra uma extraordinária disposição para experimentar novas comidas. Parece, então, que uma estranha congruência de conservadorismo e mudança nos acompanha sempre no estudo da comida.

Não deve nos surpreender o fato de que certas comidas consideradas marcadores étnicos – por exemplo, macarrão, croissants, bagels, pizza, o croque monsieur – estejam perdendo hoje esse rótulo, tornando-se, dentro do mercado global de alimentos, o que chamaríamos de comidas etnicamente neutralizadas. Graças à associação das mulheres com a comida e com o cozinhar, e dos homens com a caça e a política, desenvolveu-se uma importante literatura dedicada à comida e ao gênero (gender). Parte dela trata da relação entre a comida e a imagem do corpo; outros livros tratam da relação entre domesticidade e liberação das mulheres; outros, ainda, das ligações entre comida e a auto-identificação com gênero (gender).

As comidas escolhidas pelas pessoas indicam uma padronização em nível mundial. Uma característica regular do aumento da renda é a diminuição do consumo de tubérculos e o aumento do consumo de cereais, sendo que este só decai quando é substituído pela proteína animal e por alimentos assados. É possível traçar um padrão de consumo nos países pobres: a principio com uma orientação puramente calórica, as pessoas passam a substituir os tubérculos pelos cereais, e quando o consumo de cereais chega ao máximo, começam a acrescentar a proteína animal. Essa seqüência implica em prosperidade. Nos países desenvolvidos, a obesidade, problemas circulatórios e cardíacos e muitos outros males são atribuídos a uma dieta que, ao longo do tempo, parece infelizmente ser a mesma aspirada pelos países mais pobres, e que, muitas vezes, é alcançada nos países em desenvolvimento.

Diferenças de classe em padrões  alimentares estão agora mais integradas a diferenças entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento; o mercado mundial de alimentos acarreta mudanças mais rápidos e menos desvios. Isso explica o fato de que, cada vez mais, grupos privilegiados de assalariados e empresários chineses comecem a comer em massa, pela primeira vez, os alimentos que a classe média dos Estados Unidos acredita serem excessivamente ricos, gordurosos e abundantes em proteínas.

Resenha do Artigo Globalização e Virtualidade

novembro 24, 2008 - Leave a Response

por Tania M. L. Torres

 

MEYER, Birgit; GESCHIERE, Peter (Eds.). Globalization and identity: dialectics of flow and closure. Oxford: Blackwell, 1999. 329 pp.

 

 

Artigo: “Globalização e Virtualidade: Problemas Analíticos Propostos pela Transformação Contemporânea das Sociedades Africanas,” por Wim van Binsbergen

 

Este artigo enfoca a virtualidade como um dos conceitos-chave para a caracterização e compreensão das formas dos processos de globalização na África. Para van Binsbergen, é importante investigar também a dimensão temporal da metáfora da globalização. Sendo assim, o autor trata ainda da compressão do tempo e dos custos do tempo em relação ao deslocamento espacial. De acordo com ele, um argumento que perpassa os sistemas de adivinhação e os jogos de tabuleiro até o período neolítico sugere que tal compressão tenha sido essencial tanto para esses jogos quanto para os rituais através desses últimos milênios da história cultural do homem. A interrelação das dimensões temporais com as dimensões espaciais permitiria-nos detalhar por que a globalização tomou uma forma tão substancialmente nova nas últimas décadas. Uma vez que a forma da terra tem se mantido relativamente inalterada por milhões de ano, as culturas humanas sempre teriam estado sujeitas às mesmas condições de globalização. Mas se hoje em dia temos uma sensação de que a globalização expressa uma mudança qualitativa real que caracteriza a condição contemporânea como sendo singular, isso se deveria à natureza hegemônica da tecnologia capitalista, que nos tem proporcionado o domínio, sem precedentes, do espaço e do tempo. Para o autor, a globalização não teria relação direta com a ausência ou a dissolução das fronteiras, mas com a redução dramática das dificuldades impostas pelo tempo e pelo espaço e com a abertura de novos espaços e tempos dentro de limites que eram, anteriormente, considerados como inconcebíveis.

            Tratando, a seguir, de uma definição provisória da virtualidade, van Binsbergen argumenta que o termo tem uma história bem definida e esclarecedora, apesar de não ter existido na antigüidade clássica, sendo um mero derivado da palavra latina virtus, que significa “virtude”, “qualidade varonil”, “vigor”. O autor segue Hoenen ao dizer que o termo só teria aparecido na era medieval tardia quando o neologismo teria se tornado necessário por causa das traduções das obras de Aristóteles para a língua árabe e quando o conceito aristoteliano de dynamis (du/namiv) teve que ser vertido para o latim. A palavra teria sido acolhida pelo campo da física onde velocidade virtual, movimento virtual e trabalho virtual se tornaram conceitos estabelecidos por volta de 1800. Na perspectiva da globalização, nós nos referimos, com freqüência, aos produtos da indústria eletrônica, e as projeções intangíveis e abstratas dos textos e das imagens nas telas eletrônicas se tornaram exemplos óbvios de virtualidade.

            O autor menciona também o caso de Jules-Rosette que, na filosofia analítica, publicou recentemente um artigo que van Binsbergen reputa como esplêndido, no qual ela reserva a noção de virtualidade a uma situação discursiva específica: “as reivindicações simbólicas da promessa não cumprida da modernidade” (p. 5). Para Jules-Rosette, essa situação discursiva desempenha um papel central na construção da identidade pós-colonial: “quando um discurso virtual se torna uma narrativa cultural com valor de chave-mestra [como, por exemplo, no caso da “autenticidade” ou da “negritude”], os indivíduos precisam aceitá-la para validarem a si mesmos como membros de uma coletividade” (p. 6). Isso permite que a autora estabeleça uma ligação entre o discurso pós-colonial no Zaire e as dificuldades macro-econômicas da África atual, na qual a mágica evasiva do dinheiro emerge como símbolo central.

            Van Binsbergen postula ainda que a criolização é uma forma de virtualização. Para isso, ele depende da teoria de Hannerz, que defende que a crioulização não significa que a natureza sistêmica da cultura local tenha sido abandonada pelos atores ou destruída pelo turbilhão de influências externas, mas que ela faz um recorte no todo da cultura, de modo que uma parte considerável do sistema deixa de fazer parte dele. Explicada assim, a crioulização é, para van Binsbergen, uma forma específica de virtualidade (um desvio da natureza sistêmica da cultura local). Segundo ele, se a cultura produz uma realidade na consciência dos atores, então a realidade produzida sob as condições desse desvio (que também é virtual), é apenas virtual. A não-localidade seria uma alternativa dada e a localidade seria uma alternativa não-dada, isto é, construída de forma ativa, enquanto que a virtualidade seria o fracasso de tal construção. Dessa forma, a virtualidade dos dias de hoje se manifestaria através da incorporação sistêmica incompleta da cultura material que é tanto estranha aos atores quanto por eles reconhecida como o sendo e que circula não nas vilas remotas mas nas cidades.

            Exemplos de virtualidade são encontrados por toda a África hoje, constituindo uma parte importante de suas expressões culturais: desde religiões mundiais até a política partidária que acabam por mediar modelos globais de organização formal e de desenvolvimento. Van Binsbergen, contudo, liga tais virtualidades a um conceito obscuro de democracia, que parece coincidir com o de política. Ele as liga também à produção especializada de arte contemporânea, belas letras e filosofia, conforme tal produção é hoje inspirada por modelos cosmopolitanos bem como à produção sob forma de espetáculo (e, portanto, não mais evidente em si mesma, embora ainda consciente de si mesma, por ser uma “performance” deliberada) de formas, aparentemente locais, de música e dança (durante festivais étnicos como o Kazanga no centro-oeste da Zâmbia).

            O autor reclama que o foco típico dos estudos de globalização recai sobre a metrópole, que permite o acesso a estilos de vida internacionais através da “mídia” eletrônica, com uma presença dominante do estado e da indústria da comunicação. Contudo, ele apresenta evidências de que as pessoas nascidas nas vilas africanas também estão sendo globalizadas e sugere que uma melhor compreensão de suas experiências requer uma análise descritiva das formações sociais da África rural. Ele insiste em que, por causa do constante deslocamento de idéias, bens e pessoas entre a cidade e o campo, a dicotomia urbano/rural já perdeu muito de seu valor explanatório, permanecendo válida apenas quando informa a conceptualização dos atores africanos de seu mundo e experiências sociais. De fato, durante todo o século XX as populações rurais da África tentaram construir um novo senso de comunidade, através de diferentes formas de inovação organizacional, ideológica e produtiva que combinavam práticas locais com empréstimos externos, a fim de revitalizar, complementar ou substituir a decadente comunidade da vila na forma em que esta só fora viável no século XIX.

            Após tratar do efeito da globalização no ambiente rural, van Binsbergen volta sua atenção para a área urbana, reiterando que existe hoje, nas cidades africanas, um problema de significado. Para ele, a teoria da globalização acabou por reforçar um fenômeno paradoxal no qual a crescente unificação do mundo em termos políticos, econômicos, culturais e comunicacionais não favorece o aumento da uniformidade, mas promove, em vez disso, a proliferação de diferenças locais. Citando a famosa declaração de Gluckman de que “o aldeão africano ainda é um aldeão”, ele explica que, ao deixar sua vila, o africano logo se torna “órfão de sua tribo” (detribalized), e indaga o que teria acontecido com o significado de vila. Para o autor, é especialmente no contexto do significado que as cidades africanas podem ser vistas como arenas onde a herança desconexa, fragmentada e rural daquele que migra é confrontada com um certo número de complexos sócio-culturais de origem cosmopolita (como, por exemplo, o estado pós-colonial, o modo capitalista de produção, as religiões mundiais, a cultura consumista e cosmopolita), cada um dos quais gera seu próprio discurso e alega seu próprio compromisso com as pessoas que lhe são atraídas por sua oferta de uma solução parcial para o problema do significado. Contudo, vale salientar que o background histórico e rural daqueles que migram para as cidades não é tão fragmentado, como fonte de significado, como os múltiplos rótulos étnicos e as variadas práticas lingüísticas na cidade sugerem. Tais grupos étnicos têm, geralmente, uma história e, enquanto alguns deles são de recente criação colonial, há um substrato comum de semelhanças regionais e culturais que a eles subjazem. Cultos tradicionais e igrejas cristãs independentes, na cidade, tendem, por exemplo, a ser transétnicas, tirando seu apelo da forma como elas articulam o substrato histórico de modo a recapturar significados que podem não mais ser comunicáveis através de uma identificação direta com uma específica cultura histórica e rural. Os quatro repertórios de significado (estado pós-colonial, modo capitalista de produção, religiões mundiais, cultura consumista e cosmopolita) difeririam consideravelmente do reino do discurso simbólico que, embora internamente contraditório, acaba por dominar o acervo (local, rural e histórico) de significados dos retirantes e operários africanos. O autor conclui, assim, que a enorme evidência acerca do êxodo rural na África sugere que um refúgio rural na negação da globalização tende a ser parcial e amplamente ilusório. Isto é, as cidades, precisamente em sua exibição de elementos aparentemente derivados da esfera rural, tende a obter altos níveis de virtualidade, descontinuidade e transformação.

            Se os rituais rurais de parentesco podem parecer fora de lugar na cidade, eles parecem ainda mais fora de lugar no contexto das principais igrejas urbanas. Como um importante agente de globalização, a Igreja Católica, por exemplo, tem procurado impor vigorosamente seu conceito particular de cosmologia, hierarquia, santidade e salvação. Para van Binsbergen, o projeto dessa igreja é a monopolização da organização social dos rituais da reprodução humana e dos rituais associados às crises da vida. Ele concorda com Rasing de que a situação nas congregações urbanas é complexa, uma vez que, por um lado, há uma proliferação de grupos leigos, cada um com suas vestimentas, parafernália, estrutura de autoridade formal, rotina de reuniões e orações, e focos de atenção (o cuidado dos enfermos, a luta contra o alcoolismo, etc). Ele menciona como exemplo o fato de que o repertório simbólico e cúltico dos grupos leigos para a iniciação à puberdade incorpora mais do que a seleção mínima vista no ritual rural e muito mais do que a agregação icônica de elementos tradicionais isolados a um rito de passagem cristão e, por isso, estrangeiro. Segundo o autor, ao contrário disso, as mulheres que lideram tais grupos leigos usam a igreja e sua autoridade como contexto para a realização de um ritual de puberdade que reflete, de forma detalhada, o ritual de parentesco bemba, e isso com inegável apoio do clero.

            Van Binsbergen desenvolve, portanto, seu tema de forma lúcida e interessante, buscando amplo apoio na literatura especializada pertinente. Ele trata, convincentemente, do fenômeno da globalização como virtualidade e se preocupa principalmente com os fenômenos de deslocamento e perda de conexão no tempo e no espaço. Um “pecadilho” é, contudo, que sugira, ainda que de forma breve, que a globalização de certas comunidades africanas seja, de alguma forma, dependente de processos de democratização. O que parece, realmente, é que esta dependa muito mais das pressões externas produzidas pelo influxo de uma ideologia capitalista apoiada pela tecnologia comunicacional dos países ditos do primeiro mundo e voltada para o consumo e para a massificação dos indivíduos, mas isso também ele trata, com poucos méritos, apenas de passagem.

Resenha do Livro Globalization or Empire?

novembro 24, 2008 - Leave a Response

por Tania M. L. Torres

 

PIETERSE, Jan Nederveen. Globalization or Empire? New York & London: Routledge, 2004. 191 pp.

 

Na década de 90 o principal assunto nos debates da política e das ciências sociais era a globalização. No novo milênio, nossa procupação tem se voltado para o tema do imperialismo. Agora surge a questão óbvia de como a globalização se relaciona com o império. Pieterse indaga, portanto, se deveríamos considerar o imperialismo como uma fase ou modalidade da globalização, ou uma dinâmica inteiramente diferente. Assim, em seu primeiro capítulo, o autor enfoca o deslocamento da ênfase política e econômica do norte para o sul dos Estados Unidos. Trata também da conexão entre a guerra fria e o neoliberalismo, bem como do assim-chamado “consenso de Washington”. O autor examina a globalização neoliberal e presta atenção especial ao papel da América do Sul na reformulação do capitalismo norte-americano, além da contribuição da guerra fria para a criação de um verdadeiro neoliberalismo.

De acordo com Pieterse, a globalização neoliberal como abordagem dominante da política não significa que esta seria a única forma de globalização, mas no sentido de que esta se tornou um regime global. Os estudiosos geralmente explicam o início do neoliberalismo como uma confluência das idéias econômicas da Escola de Chicago com as políticas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Outra possibilidade seria o assim-chamado “Consenso de Washington”, a ortodoxia econômica que norteou o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial em suas políticas, na década de 90, e levou o neoliberalismo a se transformar em política global. Com efeito, Tickell e Peck discutem o desenvolvimento do neoliberalismo em três fases: proto-liberalismo (1940-1970), fase em que as principais idéias tomaram forma; fase introvertida (década de 80), na qual o liberalismo se tornou a política governamental dos Estados Unidos e da Inglaterraç e fase extrovertida (década de 90), quando se tornou hegemônico nas instituições multilaterais.

Na opinião de Pieterse, quando atribuímos a origem do neoliberalismo às idéias e teorias da Escola de Chicago, nós passamos por alto as políticas econômicas que realmente deram forma ao “verdadeiro neoliberalismo” antes da era Reagan. O sul dos Estados Unidos já, naquela época, praticava taxas baixas e um baixo regime de serviços da forma como os defensores de mercados livres propunham. O verdadeiro neoliberalismo praticado, nos Estados Unidos, nas décadas de 70 e 80, significou a implementação de uma economia baseada em baixos salários e baixas taxas conforme o modelo sulista. De fato, a matriz material do neoliberalismo é o sul dos EUA, mas se sua política de baixos salários, exploração do trabalhador, hostilidade aos sindicatos e cultura reacionária tivesse sido abertamente defendida, ela jamais teria tido a mesma atração glamorosa da teoria dos mercados livres. É, por isso, que tanto as estratégias do neoliberalismo quanto as da guerra fria são elementos fundamentais para que se compreenda o caráter real da globalização neoliberal e suas metamorfoses subseqüentes.

De acordo com o autor, essa estratégia econômica do sul dos EUA tem suas raízes no período de reconstrução do governo Reagan. O sul tem sido uma estufa política para as idéias econômicas conservadoras desde o período colonial. As reformas de Reagan atacaram os movimentos trabalhistas e de direitos civis e enfraqueceram o ambiente de trabalho e as leis de proteção ambiental e diminuíram a prestação de serviços públicos. Essa reestruturação econômica veio acompanhada de uma repercussão cultural antidemocrática e racista que teve seus primórdios, no sul, na década de 60 com George Wallace. Não foi mero acidente       que os grupos atacados por Wallace fossem os menos poderosos da sociedade norte-americana (tais como mães solteiras e imigrantes, que se tornaram presa fácil para uma mentalidade que procurava bodes expiatórios. Em 1971, a população carcerária do sul era 220% mais alta que a do nordeste. Só agora que os índices carcerários nacionais começam a se aproximar dos que existem no sul há muito tempo.

Da mesma forma, o autor acredita que a administração das multinacionais se tornou punitiva, tendo adotado as estratégias de salários baixos e exploração excessiva dos trabalhadores, na busca de uma saída para a crise financeira dos EUA. O problema é que tais estratégias acabaram se tornando o comportamento padrão nos EUA. “Desregulamentação” e cortes nos impostos viraram chavões na busca da competitividade e da flexibilidade. Contudo, o que ocorreu, de fato, é que todas essas mudanças convergiram para a formação de um regime altamente exploratório. Houve, assim, uma indústria americana à moda de Dixie que produziu uma mística sulista que operava com base em um orientalismo interno nos EUA. Tudo isso foi acompanhado das costumeiras dicotomias entre o norte e o sul como, por exemplo, entre as que ocorrem entre o moderno e o tradicional, o racional e o irracional, o secular e o fundamentalista, o urbano e o rural, a tolerância e o racismo, e que ocorrem em outras regiões do mundo.

Assim, o que sustenta a economia norte-americana de forma estruturada é uma combinação de expansão, déficit financeiro do governo e o influxo de capital estrangeiro. A principal forma de financiamento para o governo é o complexo industrial militar. De fato, a entrada de capital estrangeiro é uma das pedras angulares da economia norte-americana. Como as rendas, no país, estão estagnadas, é necessário que se comprem produtos e serviços cada vez mais baratos da China e da Ásia. Da mesma forma, os norte-americanos se tornam cada vez mais dependentes da mão-de-obra barata dos imigrantes, especialmente dos mexicanos. O período do proto-neoliberalismo do pós-guerra coincidiu com a guerra fria. Durante esses anos, a infra-estrutura do neoliberalismo passou a impregnar o pensamento econômico, a ideologia do mercado livre e a política econômica (com o aparecimento dos assim-chamados “rapazes de Chicago” no Chile e na Indonésia). Durante a guerra fria, interesses econômicos e segurança se misturaram no complexo industrial militar. A economia, política e as instituições se concentrarem em torno do complexo industrial dos militares por tanto tempo que este já se tornou uma lógica funcionalmente autônoma.

Já o assim-chamado “Consenso de Washington” se formou no fim da década de 80 como uma receita econômica para os países em desenvolvimento. Suas principais bases são o monetarismo, a redução e regulamentação dos gastos do governo, a privatização, a liberalização do comércio e dos mercados financeiros e a promoção do crescimento das exportações. O fim da guerra fria tem sido associado, portanto, com a crescente politização do FMI pelos EUA. A partir da década de 90 os EUA passam a usar o FMI para recompensar seus aliados e punir seus inimigos. As instituições de Washington passam a ser dirigidas pela panelinha de Wall Street-Tesouro-FMI de acordo com a ortodoxia econômica de modo que a história da globalização neoliberal nada mais é do que o unilateralismo econômico dos EUA.

Através da reforma estrutural, a combinação do capitalismo à moda de Dixie com a engenharia financeira de Wall Street extrapolou para a escala global. A economia sulista com sua estrutura profunda de latifúndios ilumina as realidades do ajustamento estrutural no sul global. Esse neoliberalismo que é exibido no sul é também conhecido como “a estrada haitiana para o desenvolvimento”. O objetivo do neoliberalismo era acabar com a economia do desenvolvimento e a idéia de que os países em desenvolvimento são um caso especial. Em vez disso, promove-se agora um mercado livre, sem restrições, como a resposta a todas as questões econômicas. O sociólogo Ulrich Beck comentou recentemente que o ataque de 11/09 foi o Chernobyl da globalização. De repente, as bases aparentemente irrefutáveis do neoliberalismo perderam sua força em um mundo de perigos globais. O neoliberalismo sempre havia sido uma filosofia de tempo-bom, que funciona apenas quando não há crises ou conflitos sérios. O projeto neoliberal continua a se desdobrar e agora o “Consenso de Washington” enfrenta sérios problemas. O FMI não tem mais credibilidade para tratar crises financeiras nem mesmo em Washington ou Wall Street. Pode-se até dizer que não existe mais consenso em Washington. O que resta é um conjunto heterogêneo e ad hoc de itens na agenda de Washington. Em economia, as ortodoxias neoliberais não são mais amplamente aceitas. A atenção foi desviada da falha estatal para a falha mercadológica e para a importância de instituições e temas como, por exemplo, o do capital social. Vinte anos de liberalismo rompante criaram uma cultura e um habitus (≈ latim “vício”) de neoliberalismo. O estudo antropológico dos significados do “mercado” na cultura ocidental revela que as pressuposições básicas do modelo mercadológico são de que o mundo consiste de indivíduos livres que são instrumentalmente racional e operam em um mundo composto apenas de compradores e vendedores. O ethos (grego “caráter”) peculiar do capitalismo de cassino que a globalização neoliberal criou no mundo é, em última instância, uma carga cúltica ocidental. Seus rituais secretos incluem o capitalismo de Dixie, a charlatanice de Wall Street e a estratégia da guerra fria.

Acesso para o Blog do Milton

novembro 24, 2008 - Leave a Response

Eis o link de acesso para o Blog do Milton: http://refrigerium.blogspot.com/.

Resenha do Livro Imortalidade da Alma

novembro 23, 2008 - 2 Respostas

por Tania M. L. Torres

 

CULLMANN, Oscar. Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos? O testemunho do Novo Testamento. Tradução: José Carlos Ebling. Artur Nogueira, SP: Centro de Estudos Evangélicos, 2002.

 

Em sua obra, Cullmann tenta mostrar através de um estudo exegético, o contraste ou a diferença radical entre a esperança cristã da ressurreição dos mortos e a crença grega na imortalidade da alma. O autor tenta descobrir certos pontos de contato entre esses dois pontos de vista, mas deixa claro que as premissas fundamentais são irreconciliáveis. O cristianismo estabeleceu, posteriormente, um elo entre as duas crenças, mas Cullmann mostra que a esperança da “ressurreição do corpo” e a crença na “imortalidade da alma” são, de fato, mutuamente exclusivas. Como inspiração para seu estudo, o autor usa o quadro do altar de Isenheim, pintado pelo artista medieval Grünewald, bem como a obra musical de Sebastian Bach, nos quais se expressa não a imortalidade da alma mas o evento da ressurreição do corpo. Para Cullmann, esses artistas se revelaram como os melhores expositores da Bíblia.

            No capítulo 1, encontramos uma analogia entre Sócrates e Jesus. Há um claro contraste entre a morte de Sócrates e a de Jesus. No ensino grego de imortalidade, a alma, está confinada dentro do corpo, que pertence ao mundo eterno. Enquanto a pessoa vive, sua alma se encontra em uma prisão, ou seja, em um corpo essencialmente estranho a ela. A morte é, segundo essa crença, a grande libertadora. Sócrates foi para a morte em completa serenidade e paz. Ele não a temeu, pois, para ele, ela o libertaria do corpo, por ser a grande amiga da alma. Em contraste, Marcos 14:33 relata que Jesus, no Getsêmani, começou “a sentir-se tomado de pavor e angústia”. Jesus sabia ser a morte “inimiga de Deus”, sendo esse o nome que Paulo lhe dá em 1 Coríntios 15:26.

            No capítulo 2, o contraste entre a idéia grega da imortalidade da alma e a crença cristã na ressurreição é ainda mais profundo. A interpretação judaica e cristã da Criação exclui o dualismo grego de corpo e alma, pois o visível e corpóreo seria tão verdadeiramente criação de Deus como o invisível. Por considerar Deus como o autor do corpo, este não pode ser a prisão da alma, mas, ao contrário, um templo, como diz Paulo em 1 Coríntios 6:19: o templo do Espírito Santo. A distinção básica se encontra aqui. Corpo e alma não são opostos. Deus considerou o corpóreo “bom” após tê-lo criado. A história de Gênesis explicita essa idéia. A alma é o ponto inicial da ressurreição, ela não é imortal. Deve haver ressurreição para ambos; pois desde a queda o homem todo está “permeado pela corrupção”. Para o homem interior, graças à transformação pelo poder restaurador do Espírito Santo, a ressurreição já pode ocorrer nesta vida presente: através da “regeneração dia a dia”. A carne, entretanto, ainda mantém seu lugar em nosso corpo.

            No capítulo 3, enfatiza-se que Cristo ressuscitou: isto é, estamos em uma nova era na qual a morte foi conquistada e não há mais corruptibilidade. Pois, se existe realmente um corpo espiritual (não uma alma mortal, mas um corpo espiritual) que emergiu de um corpo carnal, então, sem dúvida, o poder da morte foi rompido. Entretanto, a despeito do fato de que o Espírito Santo já está operando tão poderosamente, os homens ainda morrem, mesmo após a Páscoa e o Pentecoste. Nosso corpo permanece mortal sujeito à doença. Sua transformação em corpo espiritual não ocorrerá até que toda a criação seja renovada por Deus. Somente então, pela primeira vez, não haverá nada exceto o Espírito, nada exceto o poder da vida, pois a morte será finalmente destruída, surgindo um novo céu e uma nova terra: a esperança cristã. Então o nosso corpo também ressuscitará da morte; porém não como corpo carnal, mas como corpo espiritual.

            O capítulo 4 fala sobre o estado intermediário, no qual o homem interior, despido de seu corpo carnal, mas ainda privado do corpo espiritual, existe com o Espírito Santo. As cenas usadas no NT para descrever a condição dos mortos em Cristo provam que, mesmo agora, neste estado intermediário dos mortos, a ressurreição de Cristo – a antecipação do Fim – já está efetivada. Eles estão “com Cristo”. A confiança na proximidade de Cristo está alicerçada na convicção de que nosso homem interior já está tomado pelo Espírito Santo. Desde o tempo de Cristo nós, os vivos, temos o Espírito Santo. Se Ele realmente está em nós, já transformou nosso homem interior. Assim, então, um homem que perde o corpo carnal, está ainda mais perto de Cristo do que antes, se ele tem o Espírito Santo. O homem interior, despido do corpo, já foi ao longo de sua vida transformado pelo Espírito Santo. Embora ainda esteja “dormindo”, o cristão que morreu tem o Espírito Santo. O NT leva-nos à visão de que, para os mortos, existe outra noção de tempo, aquela “daqueles que dormem”. Mas isto não significa que os mortos não continuam no tempo. Portanto, outra vez vemos que a esperança de ressurreição no NT é diferente da crença grega na imortalidade.

            O texto apresenta, portanto, argumentos convincentes em favor da doutrina cristã da ressurreição dos mortos e sua superioridade em relação às idéias platônicas do dualismo e da imortalidade. Seu único descuido é, no entanto, apresentar o pensamento grego como sendo todo ele representado pela posição de Platão. Ora, os gregos não apresentavam uma concepção monolítica da natureza humana ou do estado do homem após a morte. Muito daquilo que Cullmann atribui aos gregos nada mais é, contudo, do que as idéias platônicas sobre o assunto. Ora, a influência de Platão em sua época é muito menor do que supomos, hoje, após sua reinterpretação pelo neoplatonismo e pelo escolasticismo cristão. Corrigir tal distorção não é difícil, porém, tudo o que precisamos fazer é ler a expressão “pensamento platônico” em vez de “pensamento grego” ao longo de todo o texto.

A Esposa do Pastor e Seu Círculo Itinerante de Amizades

novembro 23, 2008 - Leave a Response

por Tania M. L. Torres

 

Tenho sido uma esposa de pastor já por vinte e três anos. Diferentemente de outras esposas de pastor, não posso dizer que tenha tido uma vida muito nômade. Em seu ministério, meu marido só teve que se mudar para outra comunidade sete vezes nesses vinte e três anos. Temos a felicidade de trabalhar na área educacional, na qual as mudanças de residência são menos comuns do que na área do pastorado de igrejas. Mesmo assim, considero acima da média o número de sete mudanças de comunidade, em relação a mulheres cristãs que têm empregos seculares e cujos esposos não são pastores. A verdade é que cada mudança de comunidade significa uma reeducação de hábitos e a criação de um novo círculo de amizades. Isso representa uma carga emocional considerável, especialmente para a esposa de pastor. Os filhos acomodam-se geralmente em escolas adventistas onde é relativamente fácil a criação de um novo círculo de amizades. O pastor, empolgado com o novo distrito pastoral e bastante absorvido pelo trabalho, não sente tanto a mudança. Mas a esposa, especialmente se não trabalha fora do lar, tem que lidar sozinha com o fato de que perdeu suas amigas mais íntimas e tem, agora, que cultivar novas amizades. A Igreja reconhece que o papel desempenhado pela esposa do pastor é vital para seu sucesso espiritual e profissional. A Igreja também reconhece que as exigências impostas pela comunidade sobre o comportamento e as atitudes da esposa de pastor são quase sobre-humanas. Contudo, nem sempre a esposa de pastor recebe a simpatia que merece por freqüentemente abrir mão das amizades que cultivara no distrito anterior a fim de aventurar-se com as novas amizades que lhe reserva seu próximo distrito. Dita assim, esta declaração pode parecer banal, mas quem já passou pela experiência, sabe como isso é difícil.

            Além de ser esposa de pastor, tenho duas cunhadas que se casaram com pastor. Uma delas não resistiu às pressões e não somente deixou o esposo como também deixou a igreja. Diante de uma mudança de ambiente, às vezes sinto-me como se minha vida fosse um pequeno aquário no qual não há muito espaço para outras pessoas além de minha própria família. Imagino que este mesmo sentimento exista no coração de outras esposas de pastor que tenham passado por, talvez, até mais constantes mudanças do que já experimentei em meu ministério de esposa de pastor. Esses sentimentos de inadequação e minha formação em sociologia me fizeram interessar pelo impacto que a falta de um círculo de amizades pode ter sobre a esposa do pastor. Os estudos sobre o crescimento de igrejas indicam que o apelo da doutrina é um elemento secundário para a conversão quando comparado com o desejo de estabelecer vínculos sociais com os membros da Igreja. O sociólogo Rodney Stark declarou, em seu livro Sociology, que a conversão ocorre quando, mantido tudo o mais, as pessoas têm ou desenvolvem vínculos mais fortes com os membros da Igreja do que aqueles que têm com as pessoas fora da Igreja. Em outro de seus livros, intitulado O crescimento do Cristianismo, o mesmo sociólogo afirma que a Igreja cresce mais rapidamente quando sua doutrina se dissemina ao longo de redes sociais preexistentes. O que quero afirmar é que a Igreja exige que a esposa de pastor seja um modelo cristão, mas não lhe dá as condições para que ela possa desenvolver sua religiosidade da mesma forma que outros cristãos o fazem. Isto é, os velhos membros e os novos conversos à Igreja Adventista do Sétimo Dia têm à sua disposição uma ampla rede social preexistente que inclui o aconchego dos pequenos grupos e o conforto de uma igreja amorosa que os acolhe e nutre durante sua caminhada cristã. Mas isso não ocorre em relação à esposa do pastor, que se vê arrancada de seu círculo de amizades e transportada para um novo ambiente que, se não é hostil, tende a ser desafiante e, em alguns casos, até indiferente. No entanto, afirmo que, para que uma esposa de pastor tenha uma vida espiritual saudável, é vital que experimente um sentimento de pertinência a alguma rede social que seja de sua escolha.

            Associações de esposas de pastor têm tentado minimizar a solidão e o isolamento que, às vezes, as acometem. No entanto, essas tentativas esbarram, com freqüência, em sua artificialidade, especialmente se são dirigidas pela esposa de um departamental ou presidente de campo, isto é, pela esposa de quem decide o destino profissional de meu marido. Tenho me interessado bastante pelas idéias de um médico e psicólogo norte-americano, chamado Donald Winnicott. Em seu livro Gesto espontâneo, Winnicott sugere que as atitudes espontâneas são as únicas que adquirem significado em nossas experiências sociais e espirituais. Ou seja, pertencer a uma rede social imposta ou artificialmente criada é pouco mais do que não pertencer a rede alguma. Por isso, o caminho para que se mitiguem os sentimentos de isolamento experimentados por algumas esposas de pastor passa longe das decisões arbitrárias e dos manuais enlatados produzidos nos escritórios a quilômetros de distância dos problemas reais vivenciados por essas mulheres de fibra. O que precisamos é de uma mudança de mentalidade por parte da igreja local, dos esposos e da administração do campo. É preciso que deixem de nos visualizar como sendo os protótipos da santidade e que passem a nos encarar como mulheres cristãs com as mesmas necessidades espirituais e sociais dos demais membros da igreja. É preciso que nos vejam como aquilo que, de fato, somos: mulheres cristãs jornadeando em direção ao mesmo alvo: a estatura de Cristo Jesus. No entanto, nós ainda não chegamos lá. Estamos na mesma jornada, na mesma caminhada, no mesmo esforço, na mesma luta diária, esmurrando o corpo e sujeitando-o.

            As pressões do aquário são muitas, mas podemos resistir a elas, desde que nos mantenhamos unidas, evitando sobrecarregar-nos, trabalhando pela igreja em áreas compatíveis com os nossos dons, nãveis com os nossos dons, os , desde que inhada, no mesmo esforço, na mesma luta dipor algumas esposas de pastor passa longe o abrindo mão de nossa vida particular, investindo em nosso casamento e buscando amizades sinceras em todos os distritos pelos quais passarmos. A esposa de pastor pode fazer muito pela Igreja. Kay Warren, esposa de Rick Warren, iniciou, com o esposo, um ministério na Igreja de Saddleback, nos Estados Unidos, quando só havia sete pessoas freqüentando aquela igreja. Hoje, Saddleback é uma das maiores igrejas evangélicas dos Estados Unidos. Da mesma forma, Sung-Hae Kim ajudou o esposo Paul Yonggi Cho a criar a maior igreja evangélica do mundo: a Igreja do Evangelho Pleno. E ela fez isso enquanto era a reitora da Universidade Hansei, na Coréia. Ruth B. Graham, esposa do evangelista Billy Graham, construiu sua própria casa enquanto o marido se ausentava, no início da carreira, para as campanhas que realizava constantemente. Uma Igreja Adventista do Sétimo Dia geralmente tem um carinho especial pela esposa de seu pastor. Que pessoa foi mais amada por esta Igreja do que Ellen White, uma esposa de pastor? No entanto, esse carinho pode ser sufocante, às vezes, quando acompanhado de exigências injustificadas, cobranças excessivas e tentativas contumazes de controle. Mas, repito: quando amada e livre, a esposa de pastor é capaz de grandes realizações. Na igreja primitiva, a esposa de pastor desempenhou um papel tão fundamental para o sucesso da pregação apostólica que a Bíblia nos informa que os apóstolos, exceto Paulo, não iam a lugar algum sem a esposa (1 Cor 9:5).

            Quantas vezes um pastor é transferido e a esposa perde o emprego, mesmo trabalhando na obra. Quantas vezes o esposo é transferido e a esposa tem que interromper os estudos. Eu mesma demorei longos anos para concluir a graduação em sociologia… Quantas vezes ficamos sem as amigas e os rostos familiares! Parece não haver uma solução imediata para o caráter itinerante do círculo de amizades das esposas de pastor. No entanto, todos aqueles ao nosso redor podem demonstrar-nos mais simpatia, mais compreensão, mais respeito pelos constantes esforços que fazemos em prol do avanço do evangelho e do sucesso do homem e da Igreja a que amamos.