por Tania M. L. Torres
MEYER, Birgit; GESCHIERE, Peter (Eds.). Globalization and identity: dialectics of flow and closure. Oxford: Blackwell, 1999. 329 pp.
Artigo: “Globalização e Virtualidade: Problemas Analíticos Propostos pela Transformação Contemporânea das Sociedades Africanas,” por Wim van Binsbergen
Este artigo enfoca a virtualidade como um dos conceitos-chave para a caracterização e compreensão das formas dos processos de globalização na África. Para van Binsbergen, é importante investigar também a dimensão temporal da metáfora da globalização. Sendo assim, o autor trata ainda da compressão do tempo e dos custos do tempo em relação ao deslocamento espacial. De acordo com ele, um argumento que perpassa os sistemas de adivinhação e os jogos de tabuleiro até o período neolítico sugere que tal compressão tenha sido essencial tanto para esses jogos quanto para os rituais através desses últimos milênios da história cultural do homem. A interrelação das dimensões temporais com as dimensões espaciais permitiria-nos detalhar por que a globalização tomou uma forma tão substancialmente nova nas últimas décadas. Uma vez que a forma da terra tem se mantido relativamente inalterada por milhões de ano, as culturas humanas sempre teriam estado sujeitas às mesmas condições de globalização. Mas se hoje em dia temos uma sensação de que a globalização expressa uma mudança qualitativa real que caracteriza a condição contemporânea como sendo singular, isso se deveria à natureza hegemônica da tecnologia capitalista, que nos tem proporcionado o domínio, sem precedentes, do espaço e do tempo. Para o autor, a globalização não teria relação direta com a ausência ou a dissolução das fronteiras, mas com a redução dramática das dificuldades impostas pelo tempo e pelo espaço e com a abertura de novos espaços e tempos dentro de limites que eram, anteriormente, considerados como inconcebíveis.
Tratando, a seguir, de uma definição provisória da virtualidade, van Binsbergen argumenta que o termo tem uma história bem definida e esclarecedora, apesar de não ter existido na antigüidade clássica, sendo um mero derivado da palavra latina virtus, que significa “virtude”, “qualidade varonil”, “vigor”. O autor segue Hoenen ao dizer que o termo só teria aparecido na era medieval tardia quando o neologismo teria se tornado necessário por causa das traduções das obras de Aristóteles para a língua árabe e quando o conceito aristoteliano de dynamis (du/namiv) teve que ser vertido para o latim. A palavra teria sido acolhida pelo campo da física onde velocidade virtual, movimento virtual e trabalho virtual se tornaram conceitos estabelecidos por volta de 1800. Na perspectiva da globalização, nós nos referimos, com freqüência, aos produtos da indústria eletrônica, e as projeções intangíveis e abstratas dos textos e das imagens nas telas eletrônicas se tornaram exemplos óbvios de virtualidade.
O autor menciona também o caso de Jules-Rosette que, na filosofia analítica, publicou recentemente um artigo que van Binsbergen reputa como esplêndido, no qual ela reserva a noção de virtualidade a uma situação discursiva específica: “as reivindicações simbólicas da promessa não cumprida da modernidade” (p. 5). Para Jules-Rosette, essa situação discursiva desempenha um papel central na construção da identidade pós-colonial: “quando um discurso virtual se torna uma narrativa cultural com valor de chave-mestra [como, por exemplo, no caso da “autenticidade” ou da “negritude”], os indivíduos precisam aceitá-la para validarem a si mesmos como membros de uma coletividade” (p. 6). Isso permite que a autora estabeleça uma ligação entre o discurso pós-colonial no Zaire e as dificuldades macro-econômicas da África atual, na qual a mágica evasiva do dinheiro emerge como símbolo central.
Van Binsbergen postula ainda que a criolização é uma forma de virtualização. Para isso, ele depende da teoria de Hannerz, que defende que a crioulização não significa que a natureza sistêmica da cultura local tenha sido abandonada pelos atores ou destruída pelo turbilhão de influências externas, mas que ela faz um recorte no todo da cultura, de modo que uma parte considerável do sistema deixa de fazer parte dele. Explicada assim, a crioulização é, para van Binsbergen, uma forma específica de virtualidade (um desvio da natureza sistêmica da cultura local). Segundo ele, se a cultura produz uma realidade na consciência dos atores, então a realidade produzida sob as condições desse desvio (que também é virtual), é apenas virtual. A não-localidade seria uma alternativa dada e a localidade seria uma alternativa não-dada, isto é, construída de forma ativa, enquanto que a virtualidade seria o fracasso de tal construção. Dessa forma, a virtualidade dos dias de hoje se manifestaria através da incorporação sistêmica incompleta da cultura material que é tanto estranha aos atores quanto por eles reconhecida como o sendo e que circula não nas vilas remotas mas nas cidades.
Exemplos de virtualidade são encontrados por toda a África hoje, constituindo uma parte importante de suas expressões culturais: desde religiões mundiais até a política partidária que acabam por mediar modelos globais de organização formal e de desenvolvimento. Van Binsbergen, contudo, liga tais virtualidades a um conceito obscuro de democracia, que parece coincidir com o de política. Ele as liga também à produção especializada de arte contemporânea, belas letras e filosofia, conforme tal produção é hoje inspirada por modelos cosmopolitanos bem como à produção sob forma de espetáculo (e, portanto, não mais evidente em si mesma, embora ainda consciente de si mesma, por ser uma “performance” deliberada) de formas, aparentemente locais, de música e dança (durante festivais étnicos como o Kazanga no centro-oeste da Zâmbia).
O autor reclama que o foco típico dos estudos de globalização recai sobre a metrópole, que permite o acesso a estilos de vida internacionais através da “mídia” eletrônica, com uma presença dominante do estado e da indústria da comunicação. Contudo, ele apresenta evidências de que as pessoas nascidas nas vilas africanas também estão sendo globalizadas e sugere que uma melhor compreensão de suas experiências requer uma análise descritiva das formações sociais da África rural. Ele insiste em que, por causa do constante deslocamento de idéias, bens e pessoas entre a cidade e o campo, a dicotomia urbano/rural já perdeu muito de seu valor explanatório, permanecendo válida apenas quando informa a conceptualização dos atores africanos de seu mundo e experiências sociais. De fato, durante todo o século XX as populações rurais da África tentaram construir um novo senso de comunidade, através de diferentes formas de inovação organizacional, ideológica e produtiva que combinavam práticas locais com empréstimos externos, a fim de revitalizar, complementar ou substituir a decadente comunidade da vila na forma em que esta só fora viável no século XIX.
Após tratar do efeito da globalização no ambiente rural, van Binsbergen volta sua atenção para a área urbana, reiterando que existe hoje, nas cidades africanas, um problema de significado. Para ele, a teoria da globalização acabou por reforçar um fenômeno paradoxal no qual a crescente unificação do mundo em termos políticos, econômicos, culturais e comunicacionais não favorece o aumento da uniformidade, mas promove, em vez disso, a proliferação de diferenças locais. Citando a famosa declaração de Gluckman de que “o aldeão africano ainda é um aldeão”, ele explica que, ao deixar sua vila, o africano logo se torna “órfão de sua tribo” (detribalized), e indaga o que teria acontecido com o significado de vila. Para o autor, é especialmente no contexto do significado que as cidades africanas podem ser vistas como arenas onde a herança desconexa, fragmentada e rural daquele que migra é confrontada com um certo número de complexos sócio-culturais de origem cosmopolita (como, por exemplo, o estado pós-colonial, o modo capitalista de produção, as religiões mundiais, a cultura consumista e cosmopolita), cada um dos quais gera seu próprio discurso e alega seu próprio compromisso com as pessoas que lhe são atraídas por sua oferta de uma solução parcial para o problema do significado. Contudo, vale salientar que o background histórico e rural daqueles que migram para as cidades não é tão fragmentado, como fonte de significado, como os múltiplos rótulos étnicos e as variadas práticas lingüísticas na cidade sugerem. Tais grupos étnicos têm, geralmente, uma história e, enquanto alguns deles são de recente criação colonial, há um substrato comum de semelhanças regionais e culturais que a eles subjazem. Cultos tradicionais e igrejas cristãs independentes, na cidade, tendem, por exemplo, a ser transétnicas, tirando seu apelo da forma como elas articulam o substrato histórico de modo a recapturar significados que podem não mais ser comunicáveis através de uma identificação direta com uma específica cultura histórica e rural. Os quatro repertórios de significado (estado pós-colonial, modo capitalista de produção, religiões mundiais, cultura consumista e cosmopolita) difeririam consideravelmente do reino do discurso simbólico que, embora internamente contraditório, acaba por dominar o acervo (local, rural e histórico) de significados dos retirantes e operários africanos. O autor conclui, assim, que a enorme evidência acerca do êxodo rural na África sugere que um refúgio rural na negação da globalização tende a ser parcial e amplamente ilusório. Isto é, as cidades, precisamente em sua exibição de elementos aparentemente derivados da esfera rural, tende a obter altos níveis de virtualidade, descontinuidade e transformação.
Se os rituais rurais de parentesco podem parecer fora de lugar na cidade, eles parecem ainda mais fora de lugar no contexto das principais igrejas urbanas. Como um importante agente de globalização, a Igreja Católica, por exemplo, tem procurado impor vigorosamente seu conceito particular de cosmologia, hierarquia, santidade e salvação. Para van Binsbergen, o projeto dessa igreja é a monopolização da organização social dos rituais da reprodução humana e dos rituais associados às crises da vida. Ele concorda com Rasing de que a situação nas congregações urbanas é complexa, uma vez que, por um lado, há uma proliferação de grupos leigos, cada um com suas vestimentas, parafernália, estrutura de autoridade formal, rotina de reuniões e orações, e focos de atenção (o cuidado dos enfermos, a luta contra o alcoolismo, etc). Ele menciona como exemplo o fato de que o repertório simbólico e cúltico dos grupos leigos para a iniciação à puberdade incorpora mais do que a seleção mínima vista no ritual rural e muito mais do que a agregação icônica de elementos tradicionais isolados a um rito de passagem cristão e, por isso, estrangeiro. Segundo o autor, ao contrário disso, as mulheres que lideram tais grupos leigos usam a igreja e sua autoridade como contexto para a realização de um ritual de puberdade que reflete, de forma detalhada, o ritual de parentesco bemba, e isso com inegável apoio do clero.
Van Binsbergen desenvolve, portanto, seu tema de forma lúcida e interessante, buscando amplo apoio na literatura especializada pertinente. Ele trata, convincentemente, do fenômeno da globalização como virtualidade e se preocupa principalmente com os fenômenos de deslocamento e perda de conexão no tempo e no espaço. Um “pecadilho” é, contudo, que sugira, ainda que de forma breve, que a globalização de certas comunidades africanas seja, de alguma forma, dependente de processos de democratização. O que parece, realmente, é que esta dependa muito mais das pressões externas produzidas pelo influxo de uma ideologia capitalista apoiada pela tecnologia comunicacional dos países ditos do primeiro mundo e voltada para o consumo e para a massificação dos indivíduos, mas isso também ele trata, com poucos méritos, apenas de passagem.